A primeira canção que ensinei à minha filha, quando ela chegou à minha vida foi uma que começa assim “A vida é bela quando tu te dás…” Emociono-me sempre com a doçura com que ela a canta. E ela acabou de a cantar para mim, antes de adormecer.
Ao contemplar o brilho no olhar da minha filha, tenho a certeza que a vida é mesmo bela!
Há um vírus que mudou as nossas vidas. Parece-me delicioso quando a Domingas me diz: “Eu nunca vivi nada assim, ter de ficar em casa e não poder ir para a escola, para a catequese!”
Fala, sente, como gente crescida. Por vezes, pergunta-me: – Achas que eu vou apanhar o Coronavírus?
Noutros momentos, abraça-se a mim e diz que não quer que eu morra, pois só eu lhe dou segurança.
Não sei quando iremos morrer, mas não estou demasiado preocupada com isso. “Cada um vai na sua vez!” – diria a minha mãe – E eu irei na minha.
Nestes últimos dias foi tanto o que temos aprendido!
Julgo que aprendi mais informática nesta semana, do que em décadas de existência. Quer dizer, já faltei a uma reunião da escola, por videoconferência, por “problemas técnicos” (aselhice minha, leia-se), já cheguei diversas vezes atrasada ao nosso encontro diário de oração, do centro juvenil, por não conseguir ligar a câmara ou ligar o som. Mas, mais umas semanas de treino e vou ficar perita. Pelos vistos, tempo não nos vai faltar!
A minha filha parece que cresceu imenso e só passou uma semana, desde que iniciámos este “retiro” em casa. Aprendeu a mandar emails e quer estar sempre a enviar alguma coisa para os tios, para os padrinhos. O que ela gosta mais é de mandar smiles. Já sabe o que é uma password e quer inventar as suas.
Gosta muito de me ajudar a cozinhar ou, então, de escrever a receita da sopa que eu estou a fazer.
Organiza festivais da canção com as suas amigas, sem elas saberem, é claro! Ela faz tudo: apresenta, canta as diversas canções, entrevista o público para saber qual é a sua votação. Eu e as suas bonecas fazemos parte do público, a minha função é bater palmas e filmar o espetáculo.
Às vezes fazemos ginástica, dançamos. No dia seguinte, estamos todas partidas e ela queixa-se logo: – “Ai a minha espondilose!” – uma expressão que ela aprendeu na televisão, mas que nem sabe o que quer dizer.
Nos poucos passeios que temos dado perto de casa, procuro que ela veja como tudo é tão belo. Apesar desta pandemia, as folhas estão a crescer, as flores estão a abrir, os pássaros continuam a voar. E a minha menina, com a sua sensibilidade, começa a falar com as flores, a fazer-lhes carícias. Depois corremos juntas, fazemos jogos de mímica, saltamos às cordas, surpreendemo-nos, uma à outra, com uma nova partida ou com a gargalhada mais estridente.
Após, uns momentos de liberdade, voltámos ao trabalho. Ela tem feito as fichas/atividades que a professora lhe envia. Nem posso acreditar, mas a maioria das vezes ela empenha-se a sério, aperfeiçoou a letra e está muito mais autónoma. Tudo o que for da Escola Virtual ela gosta de fazer sozinha.
Eu tenho tido imenso trabalho da escola. Tenho trabalhado mais horas do que se estivesse na escola. Não me importo de o fazer, de estar disponível para os alunos e os meus colegas, porém custa-me não ter tempo para dar toda a atenção de que gostaria, à minha filha, agora que a tenho tão perto de mim.
Conviver 24 horas, sobre 24 horas, confinada a uma casa, com a Domingas, cansa! Só não sabe isso quem não a conhece. Ela desde que acorda até que adormece está sempre em movimento físico e mental. Está sempre a falar e quer respostas constantes, a situações realmente prementes, mas também ao cálculo mental, ao jogo da palavra puxa palavra, a histórias que inventa e vai contando, mas vai verificando se eu estou atenta, perguntando, por exemplo: “Onde se escondeu o coelho?” Ao que eu respondo, no meio dos meus afazeres, sempre a correr: “Que coelho?!” Logo ali faz um drama, por eu ter estado desatenta.
Nesta última semana, quando me chateio com a Domingas comecei a utilizar a expressão: “Para o que a minha mãe me criou!” Ela achou-lhe tanta piada e está sempre a aplica-la. Vê as notícias na televisão sobre a COVID-19 e exclama: “Para o que a minha mãe me criou!” Se lhe digo que é hora de parar de ver desenhos animados, responde: “Para o que a minha mãe me criou!”
Adoro pessoas com sentido de humor e isto a minha filha tem de sobra, quando está bem-disposta!
Apesar da doença, da morte, do estado de emergência, a vida é bela quando tu te dás. E o momento de te dares é agora, pois amanhã pode ser tarde!
Vila Nova de Gaia, 22 de março de 2020
Graça Borges, SSCC